No gabinete do sr. Rodrigo de Moraes Soares deu-se em um dos dias do corrente mês uma das cenas mais comoventes que a ciência portuguesa tem presenciado nos tempos modernos.
Todos os jornais o noticiaram com profunda comoção; poucas pessoas o leram sem se lhes humedecerem os olhos.
O caso tinha sido sagazmente preparado com algum tempo de antecipação. Tinham-se expedido ofícios, consultas, convocações; tinham-se trocado cartas particulares e bilhetes de visita; tinha havido a esse propósito conversações em voz baixa nos vãos das janelas, no Grémio, no último beija-mão no Paço, e de noite a horas mortas no aterro.
As pessoas iniciadas na combinação que se urdia, piscavam-se os olhos quando se encontravam nas ruas, faziam-se sinais, trocavam-se sorrisos entre si, andavam depressa ou tomavam trens à hora, perguntavam uns pelos outros nos grupos do Chiado, e quando se encontravam diziam assim:
– Então?
– Por enquanto nada.
– O homem?
– Anuiu.
– Espera-se aquilo?
– Está visto.
– Passe palavra aos outros para estar tudo a postos.
– Olho vivo!
– Pé leve!
Chegou finalmente o grande dia.
No gabinete do sr. conselheiro Rodrigo de Moraes Soares estava tudo preparado. Principiaram a chegar os sujeitos. Eram pessoas de diferentes hierarquias sociais, mas de carácter firme.
Sentaram-se todos, abriram-se as garrafas e deu-se início ao grande facto científico, constitucional e económico, da prova dos vinhos.
Suas excelências principiaram discretamente pelos vinhos de Espanha e pelo Madeira, depois passaram aos vinhos do Reno, em seguida aos de Bordeaux e de Bourgogne, por último veio o Porto.
Eles estavam concentrados, silenciosos, com os olhos cerrados, o beiço molhado e luzídio. Os copos tilintavam. Havia no ar o perfume do álcool docemente combinado com o do lacre esmagado. As garrafas giravam em roda.
Beberam Madeira, tinto e branco, Xerez de todas as idades, Johannisberg, Liebefraumilch, Hocheimer, Rudesheimer, Markebruwner, Chateau Yquem, Chateau Lafite, Sauterne, Chateaux Margaux, Saint Estefe, Chambertin, Beaune, Graves, Côte Rotie etc., Porto de diferentes novidades, de diversas quintas, de vários processos.
Por fim, tendo bebido tudo, a benemérita comissão dos provadores enxugou os beiços, e retirou silenciosamente a suas casas, compenetrada de respeito pelas instituições e de amor pela pátria.

In, “As Farpas”, Eça de Queiroz,/Ramalho Ortigão

Bacchus

Baco, Guido Reni